quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Aquillo que fica

Não precisei ler informações científicas sobre o exame da medula óssea para saber que a primeira punção a gente não esquece... talvez nem as seguintes. Dentro dos ossos são fabricadas as células que formam o sangue que circula no organismo, dando-lhe vida. Quando estas células revolucionam sua forma ou quantidade o encaminhamento médico é estudar a medula.
Este estudo parte do pedacinho - mielograma ou aspirado de medula - que é extraído do osso externo, bem ali, na frente do coração ou na crista ilíaca, no osso da perna.
A coisa funciona mais ou menos assim, depois de uma anestesia não muito eficaz, ardida pra danar, o médico introduz uma agulha em forma de cruz (desconjuro!) no osso escolhido. Se o externo ou a crista ilíaca em questão for no seu corpo, você terá dimensão dessa experiência.
Anime-se, mesmo parecendo, sua alma, seu eu, não o abandonará... o coração continuará vibrando e as pernas continuarão levando-o a espaços desejados! Mesmo porque... é sóóó manter a caaaalma, a tranquilidaaade, inspirar e expirar suavemeeeente, não contrair ou tensionar seus músculos, seu corpo, pensar em coisas boas, relaxaaaando, sorriiiindo.
Desculpem, não há como não gargalhar!!! Lembro-me da pergunta genial da moça com câncer no útero, de mãos na cintura, ao interpelar o médico acintosamente: Manter a vida normal... e "como" isso é possível, doutor?
Experiências como punção, perda de pessoas queridas, frustrações, medos, dores, decepções, perdas em si, a gente não esquece. Mas justamente elas é que nos fazem transcender, levando-nos a continuar apostando na vida que pulsa.
Para isso precisamos superar o medo de nos lançarmos e principalmente o medo que porventura nos faça superproteger pessoas - filhos, alunos, por exemplo - evitando que se frustrem. Lidar com as frustrações é redentor, é libertador, traz aprendizagens, ensina a viver.
Neste contexto, aproveito para contar que na mesma semana em que meu eu quase se esfacelou com a punção medular, ao vagar pelo centro da cidade, entrei aleatoriamente numa loja e fiquei divagando. Não, estou para além do consumismo. Eis que de repente surge uma moça atenciosa e oferece ajuda, respondi a célebre "tô dando uma olhadinha", terror dos comerciários.
Agradeci e ia saindo quando ouvi da mocinha simpática: Você é a Sandra, não é? Respondi. Ela complementou : você foi minha professora no bairro João Paulo, na 4ª série.
Apesar de reconhecer alguns estudantes que já tive o privilégio de conviver, isto nem sempre é possível, principalmente transcorridos algo como 20 anos.
Isabel, não reconheci você, não sei nem se seu nome é escrito com S ou com Z, consequência da perda de contato direto, mas estou profundamente agradecida por você ter me reconhecido - em especial nesta semana de "punção".
Saber que você guarda meus bilhetes que incentivavam a leitura e o afeto, escritos vinte anos atrás e que mostra a sua filha para incentivá-la a ler, a estudar, encheu-me de vida. Algo da nossa relação estudante/professora continuou pulsante. Não foi à toa que nos encontramos nas voltas que a vida dá.
Eu teria muito a "lhe" dizer, a "me" dizer sobre o que nos aconteceu, mas as palavras neste momento parecem insuficientes. Nossa experiência está para além das palavras.
A literatura sempre me impulsionou e saber que venho conquistando parceiros nesta paixão encanta-me, apesar dos percalços de um sistema em que muitos dos meus alunos (e outros tantos) não conseguiram e/ou não conseguem concluir o estudo formal.
Hoje à tarde vou levar no seu trabalho o MICROcoisas, meu mais recente parto literário. Quero compartilhar com você minha escritura, quero acrescentar aos bilhetes do passado outras "escrivinhações", ampliar o assunto com a sua filha.
Isabel, ler linhas e entrelinhas dos livros e da vida torna nossas experiências enriquecedoras... E não será uma punção medular ou a imposição de um sistema desigual e injusto que nos impedirá de escolher aquilo que verdadeiramente não queremos esquecer... pois o coração continua pulsante sobre nossas pernas.
Você me encheu de vida, Isabel!
Escolho registrar você em minha retina e memória.